21.10.09

Enchi um lago de lágrimas

Hurt,Peter Murphy
O telefone tocou por volta do meio-dia. Lembro-me de estar um dia de Verão óptimo - céu azul, sol, calor q.b., aquele cheirinho de Julho no ar que sempre me faz desejar que todos os outros 364 dias do ano fossem como este, árvores carregadas de fruta e flores em todo o lado. Depois de uns meses de Primavera onde tudo aqui, nos campos holandeses, renasce, há esta explosão ainda maior de côres e cheiros trazidos pelo Verão. Se os Invernos aqui conseguem ser lentos, chatos, escuros, frios, longos e deprimentes, a verdade é que somos recompensados em grande pela natureza entre os meses de Maio e Setembro!

Estava a preparar-me para ír até à "prainha do lago". É assim que lhe chamo, porque não é a praia como conheci toda a minha vida, com um areal interminável e o oceano atlântico, mas um relvado gigante a 10 minutos de distância da minha casa, onde zonas para picnic foram construídas a bom-gosto, uma zona para passear e brincar com os cães, uma zona com diversões para crianças, uma zona para grupinhos de amigos hippies que se juntam ao final de uma tarde de Verão a fumar erva e a tocar djembe e didjeridu, uma zona com cadeirinhas de madeira para idosos que no meu entender só mesmo aqui na Holanda observam aquele grupo de jovens com uma certa curiosidade, sorrisos e até admiração, porque é tão bom ser-se jovem e ter-se a vida inteira pela frente (viva a tolerância!), uma zona para se andar de patins em linha e skateboard... uma zona para tudo mesmo! Tudo o que se possa pensar fazer ao ar livre num dia de Verão, os holandeses pensaram, planearam e tornaram possível. Fantástico - tudo tão organizadinho! Até as árvores têm uma função de oferecer sombra num dia quente e foram plantadas exactamente à mesma distância entre umas e outras. Um verdadeiro jardim-puzzle onde tudo tem uma função muito específica! Esta ordem e funcionalidade é uma das coisas que mais aprecio na Holanda e mais sinto a falta quando aqui não estou, mas também é uma das coisas que mais detesto... há limites para tudo e se há coisas que oferecem vantagens, há desvantagens também - como a falta de espontaniedade. (Como é que se pode improvisar quando já está tudo planeado, pensado e criado para nós?)
Naquele dia de verão, uma caminhada com os meus queridos cães, brincar com eles no relvado e depois avançar para o espaço de areia à beira da água do lago, e nadar um bocado na água limpa e fresca do IJsselmeer pareceu-me perfeito! Com tudo pronto, mochila às costas com toalha de praia, livro, protector solar, uma garrafinha de água e tijela para os cães e uma coca-cola para mim, trelas e bola de ténis... sim, estava pronta! Que dia de Verão! Passei meses de Inverno à espera deste momento! Estava sentada na bicicleta a tentar equilibrar-me de mochila às costas, com trelas compridas nas mãos, que me puxavam mais depressa do que escolheria pedalar, mas se há coisas que cães sentem rápido é quando umas horas de brincadeira e divertimento se aproximam e, como crianças pequenas, não conseguem esperar! Lembrei-me de que tinha deixado a máquina fotográfica em cima da mesa da sala e voltei para trás para a ír buscar. Como se precisasse de ainda mais fotografias dos cães dos que as que já tenho! Mas sou uma "dona-babada", não há nada a fazer!
Parei a bicicleta à porta de casa e deixei os meus dois cães presos nas suas trelas ao volante da bicicleta enquanto entrei em casa para pegar na máquina. Eles ficaram com um ar confuso a olhar para mim, como quem diz: "então, não íamos fazer nada giro hoje?" (são momentos destes que me fazem imaginar tantas vezes como eles soariam se falassem... ahahah!), e nesse olhar confuso soltaram um "wof" de protesto, mas tinham que esperar mais um minuto ou dois. Ou pelo menos foi o que pensei na altura. Quando abri a porta de casa o telefone estava a tocar. Soava como sempre, um triiim-triiiim irritante que me faz detestar tantas vezes telefones, mas como senti uma urgência no toque atendi-o, caso contrário dada a situação e o dia lá fora teria ignorado qualquer chamada!
Era uma amiga minha, de Portugal. Como senti muito rápidamente que este telefonema ía demorar mais do que uns curtos minutos, pelo som da voz dela ao dizer "... Raquel?... Sou eu...", avancei com o telefone portátil preso entre a minha cara e o ombro lá para fora, libertei os cães das trelas presasà minha bicilceta e trouxe-os para dentro de casa comigo. Eles nem sequer protestaram, apenas deixaram-se caír na mantinha deles com um ar vencido. "Parece que afinal não vamos a lado nenhum hoje", diriam se falassem... mas suspiraram ao deitar-se na mantinha fofa e em menos de 1 minuto já estavam a dormir e a roncar. (Quem disse que vida de cão é dura, mentiu!)
Depois de me libertar da mochila que trazia às costas, que naquele momento pareceu começar a pesar 30 quilos, e de a atirar para um canto da sala, sentei-me no meu sofá, suspirei, mudei o telefone do lado esquerdo para o lado direito do meu rosto e, sentindo-me preparada para o pior disse-lhe - "Ok amiga, estou aqui, diz..."
- "Tenho uma notícia triste para te dar."
- "Sim, eu sei, diz..." E antes que ela dissesse mais alguma coisa, naquele momento silencioso entre uma frase e outra, ouvi o que ela ainda tinha que me dizer. Não o ouvi da boca dela, ouvi-o no coração, confirmando a sensação que tinha tido momentos antes ao ouvir o toque do telefone soar com uma urgência brutal. Depois disso só me lembro de ela começar a verbalizar o que eu já sentia. Como uma cena de um filme, a voz dela soou a um eco incompreensível e mesmo assustador, uma voz medonha a afastar-se para longe... cada vez mais longe... até deixar de ouvir fosse o que fosse. Não sei ao certo quanto tempo fiquei sentada no sofá, a fixar o chão de telefone na mão, até ouvir a voz dela novamente, desta vez já nítida, a perguntar-me com alguma preocupação "Ainda tás aí...?" Não sei se o meu cérebro se desligou por uns momentos, ou se algum mecanismo de defesa fez com que a mensagem dela me fosse dada a ouvir numa voz distorcida e incompreensível, mas a verdade é que não fez diferença nenhuma. Sabia o que a levara a ligar desde o momento que tinha atendido o telefone. Consegui recompôr-me e antes de lhe responder, ainda de olhos fixados no chão da sala, pensei para os meus botões "Tenho que aspirar este chão!"
Resolvi recostar a cabeça que girava a mil à hora na almofada do sofá e fixar o meu olhar no tecto da sala, que pareceu tornar-se cada vez mais baixo e apertado causando-me um enjôo enorme e uma sensação tão claustrofóbica que me fez levantar e abrir a porta traseira para o quintal. Sentei-me lá fora ao sol, a apanhar o ar fresco deste dia de Verão na cara, dia que me parecera antes de todo este telefonema como o dia perfeito, e senti-me como se estivesse a recuperar os sentidos após um desmaio. Nesse momento apercebi-me de que ela continuava do outro lado da linha, a chamar por mim e a tentar entender como eu estava deste lado. Pedi-lhe desculpas, mas tinha que desligar. Prometi ligar-lhe de volta mais tarde e, sem sequer esperar por uma resposta dela, desliguei o telefone.
Por uns momentos respirei fundo, tentei acalmar o bater do meu coração que estava tão acelarado que me podia ter morto naquele instante, levantei-me e comecei a andar em círculos pelo relvado do meu quintal . Os meus cães juntaram-se a mim, pensando provavelmente que a dona já estava pronta para brincar com eles, finalmente. Mas só consegui ignorá-los, o que os fez voltar para dentro de casa muito depressa e deitar-se outra vez na sua manta, lado a lado, para adormecerem e começarem a roncar 2 minutos depois, novamente. (sim, vida de cão é difícil!...)
Num acto de teimosia mental, de não querer acreditar no que momentos antes uma amiga minha já há mais de 20 anos e em quem confio a 100% me tinha dito, no achar que ela tivesse tido a bela ideia de me pregar uma partida de muito mau-gosto, peguei no telefone e marquei um número de Portugal que ao fim de tantos anos a minha boa memória nunca deixou escapar. Precisei de o fazer, para que a informação que a minha amiga me tinha dado pudesse ser confirmada. E foi. Mesmo assim, ainda insisti em marcar mais um número de telefone que também tinha na minha memória para que uma terceira pessoa me dissesse o mesmo. Desta vez fiz daquelas perguntas idiotas do tipo "Tem a certeza?", como se houvesse alguma margem para erros numa situação destas. Ou se está vivo ou se está morto, é tão simples e tão frio quanto isso. Não há espaço para talvez, para ainda não se sabe, para logo veremos.
Acho que só depois de ter falado com a terceira pessoa ao telefone é que a realidade entrou de facto em mim. Comecei a sentir, a pensar, a sofrer. Doeu, mas foi um alívio saír daquela confusão mental e emocional em que me encontrava desde o telefonema da minha amiga. E quando a minha mente se deixou convencer da realidade, o meu corpo deixou-se afogar num choro profundo e doloroso durante horas seguidas. Só me lembro de ter chorado assim, tão intensamente que parece que estamos a vomitar a nossa própria alma, uma vez na vida. Desta vez doeu ainda mais, porque não havia nada a fazer. A morte é irreversível.
Saí porta fora, de cara vermelha e olhos tão inchados que mal os conseguia manter abertos, sentei-me na bicicleta e pedalei numa fúria e revolta enormes até à prainha do lago. Os meus cães ficaram a dormir em casa, não sei se protestaram ou não, ou mesmo se deram por mim saír, porque na altura nem me lembrei deles. Cheguei à prainha, e sem tirar sequer a roupa que tinha vestida deixei caír-me na água do lago, que parecia saber exactamente do que eu estava a precisar e estava gelada! Nadei e chorei até me sentir exausta e foi um alívio. Ali, na água do lago, a sentir-me sózinha e isolada de tudo, consegui desprender-me da revolta e da raiva que estava a sentir. Deixei-me boiar uns momentos na água do lago e nas minhas próprias lágrimas, e só saí da água quando me senti mais leve. Apercebi-me de que foi horas mais tarde, quando ao voltar para casa vi os ponteiros do relógio marcar 18 horas. Tomei um duche quente, fiz um chá, tomei uma aspirina na ridícula esperança de que este químico também tirasse dôres como a que estava a sentir, e deitei-me no sofá de olhos fechados, cansados e doridos. Acordei mais tarde quando chegaste a casa e passei uma noite tranquila e maravilhosa contigo ao meu lado, sem ser preciso dizer rigorosamente mais nada, para além do que tinha acontecido. Os teus braços à minha volta, as festas que me deste no cabelo, a televisão que deixaste desligada mesmo sabendo que o teu clube de futebol jogava um jogo importante nessa noite, a tua compreensão do meu sofrimento e o nada ser perguntado ou dito, foi o melhor apoio que me pudeste dar. (Quem disse que o amor cura tudo tinha razão!)

Há coisas que nunca se esquecem. Momentos que marcaram as nossas vidas e pessoas que passaram por esses momentos. Sei que nunca vou perder totalmente estar dôr de ter passado pela tua morte, mas o que vou lutar para manter vivo em mim são todas as boas memórias da tua vida.
Mas o que sinto agora ainda é um vazio que dói...

Acabou-se.
Ponto final.
Fim de história.
(Julho 2008)

9 comentários:

  1. Oi Silvana, obrigada!
    Achei o teu espaço "Foi desse jeito que eu ouvi dizer" muito interessante... gosto de mitos, histórias e sou fã do Brasil, por isso andarei por perto ;)
    Bjs e até mais,
    Raquel

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  2. Anónimo21.10.09

    Raquel,
    mergulho seempre nas tuas histórias como se realmente as tivesse a viver, e esta foi angustiante... a morte é, sem duvida, a nossa mais profunda e maior limitação...talvez a unica coisa k o ser humano jamais poderá vencer.

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  3. HannaH, e não é irónico o facto da morte existir e 1 dia chegar também ser a única coisa que o ser humano sabe com toda a certeza na vida?...

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  4. Oi Giovani, obrigada e bem-vindo ao meu espaço!

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  5. Hoi Wim, vind ik ook! Helaas niet van mij... maar het paste perfect bij mijn tekst!

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  6. Foda-se!... desculpa o termo, não consigo dizer mais nada.

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  7. estava a ler este texto outra vez, e foda-se é a única coisa que consigo dizer mais uma vez. mt forte, mt marcante. lembro-me de termos tido uma conversa mt fixe sobre este dia.
    beijo
    +24 :)

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  8. Não me imagino a viver uma perda destas...a minha, só aconteceu na minha mente...nos nossos corpos, mas ele continua ali a lembrar-me a ilusão de td o que vivi...e vai continuar, pq é o pai do meu filho.
    outro bj

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