14.4.09

Somos quem somos

(illustration by ?)

Desde que aqui moro que vejo todas as manhãs, um homem que passeia a pé passando em frente às portas de vidro da minha sala. Por volta das 8 horas ele passa numa direcção, a caminho sabe-se de lá do quê ou de quem, e uma meia hora mais tarde lá passa ele de volta na direcção contrária. Uma ída e volta aparentemente sem sentido nenhum para quem observa, mas com o passar do tempo e o meu olhar curioso fui aprendendo que há um motivo naquela caminhada que o homem faz de manhã. Não preciso de saber qual é, embora a minha mente me empurre para o caminho irresistível que é a especulação. E faço-o. Se a curiosidade matasse eu já cá não andava de certeza!
Quando ele passa em frente à minha casa, por volta das 8 horas da manhã, fá-lo de cabeça erguida e pose segura, passos determinados embora não ande depressa demais. O que eu vejo é alguém que vai a caminho de algo que o motiva, que lhe dá força, pelo qual ele sente paixão. Algo que provavelmente lhe dá o sabor e a razão de estar vivo.
São 8h40m aproximadamente. O homem regressa sei lá de onde ou da companhia sabe-se lá de quem, passando novamente na tal direcção contrária novamente em frente às minhas portas de vidro da sala. Cabeça baixa, pés arrastados, cansaço no olhar e na postura... toda a sua aura é tremida, pesada e desfocada, e consigo quase sentir a fraqueza que ele sente, o medo, a dúvida...
Porque é que todos os dias este homem consistentemente faz uma caminhada que parece matá-lo aos poucos? Onde estará a razão para isso? Onde é que ele vai? Do que é que ele anda à procura?
Porque é que todos os dias eu abro as cortinas das minhas portas de vidro, para o poder ver passar - de ída, com uma postura que me faz quase querer acompanhá-lo nessa caminhada cedinho de manhã para que também eu possa aproveitar aquela força com que ele começa o dia; e de volta, com uma nuvem cinzenta que o faz parecer andar às escuras mesmo que o dia esteja de sol, e que inevitavelmente me faz fechar as cortinas num gesto rápido e quase embaraçoso, para que ele não veja que eu o vi naquele estado.
Mas acho que ele me vê. Tenho a certeza que ele me vê. Nunca de ída, mas na volta, quando está de cabeça para baixo, quando se sente arrasado. Ele não olha para mais nada senão para o chão que pisa, mas eu sei que ele me vê.
Ao contrário da curiosidade que eu sinto em relação a este homem, enquanto pessoa desconhecida e tão familiar ao mesmo tempo, tenho a certeza que ele não pensa mais de mim do que uma mulher que todos os dias às 8h00m e mais tarde por volta das 8h40m, se encontra a olhar (in)discretamente pelas portas de vidro. Ele não parece incomodar-se com isso. Quando ele vai sente-se bem demais com tudo o que é e o rodeia para se incomodar com o meu olhar interessado; quando ele regressa fá-lo de uma forma tão desvastante e triste que mesmo que eu estivesse com as portas de vidro abertas e uma arma apontada na sua direcção, ele não se importaria... secalhar seria esse o único momento em que ele me olharia nos olhos e diria, baixinho mas com determinação "do que é que estás à espera?".

Um dia tem 24 horas. Não sei nada deste homem nem sobre o que ele faz durante o dia, a não ser uma caminhada todas as manhãs que dura pouco mais que meia-hora. Mesmo nessa caminhada não sei quem ele é, o que pensa ou onde vai. Vejo-o durante 15 segundos à ída e talvez durante uns 25 de regresso.
Nunca precisei de saber mais nada sobre ele do que aquilo que sei, e isso é apenas o que eu imagino, o que escrevo na minha mente sobre o "homem que vive algures na minha rua e que passa à frente da minha casa todas as manhãs".
Nunca precisei de saber mais nada sobre ele do que aquilo que já sei - até hoje, quando me apercebi de que já eram 10h45m e o homem não tinha passado em frente às minhas portas de vidro. Ou será que ele passou e eu não o vi?
Não. Eu tinha-o visto, tivesse ele passado aqui em frente como é habitual.



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